Homenagem

Aos combatentes açorianos e continentais que souberam, apesar das circunstâncias, defender a responsabilidade social básica de todos os cidadãos e preservar a sobrevivência da sua sociedade e os valores que a caracterizam.

Saibamos ser dignos do que fizemos para dizermos - MISSÃO CUMPRIDA

STRESSE


Stresse

O stresse (vulgo) cacimbo ou cacimbado, foi um dos problemas que (quase) todos os militares em zona operacional tiveram de combater. Ainda hoje, cerca de cento e cinquenta mil militares das guerras coloniais sofrem desta doença, principalmente aqueles que estiveram em zonas operacionais de grande desgaste físico e psicológico e onde a sobrevivência e a luta pela vida era uma constante.
A nossa companhia teve alguns casos de stresse, uns de mais difícil de resolução que outros, mas quase todos sofremos desse mal.
Os casos mais complicados foram a do 1º cabo Rodrigues e do soldado Cabral, ambos evacuados para Luanda. A situação do 1º cabo Rodrigues foi a de mais fácil resolução, pois o mesmo não mostrava sinais de agressividade, apenas problemas psíquicos que já o tinham afectado antes de integrar a vida militar e que se agudizaram a seguir à mobilização. Com a chegada ao Lufico e com o ambiente que encontrou, foi-lhe difícil a integração, para além de lhe ser difícil arranjar amizades entre os camaradas. Isolava-se no seu mundo e pouco ou nada convivia. Isso fez com que a certa altura a cabeça deixasse de funcionar em pleno. 
Já o Cabral foi completamente diferente, era sociável e não denotava nada de “anormal”. Era extrovertido e bastante brincalhão, sempre pronto a ajudar e a colaborar, achava-lhe piada aquele sotaque vem vincado de Rabo de Peixe, no início confesso que me custava a compreender, mas com o passar do tempo já o percebia bem. Era amigo do seu amigo e todos, apesar da sua irreverência, gostavam dele. Eu compreendia-o bem, as suas amarguras e tristezas, as suas angústias e estados de alma, não tanto os meus camaradas, quer furriéis quer oficiais. Sei que era meu amigo e ele sabia que eu era seu amigo. Aos poucos, fui denotando nele algumas diferenças comportamentais, tornou-se mais agressivo e distante, começando a isolar-se dos restantes. Frequentemente e ao contrário da maioria dos meus camaradas furriéis e oficiais, ia à caserna conviver com os meus camaradas soldados e cabos, conversava-mos muito e até, aos que não sabiam escrever predispunha-me a fazê-lo, sem nenhum tipo de complexo.
O Cabral já tinha tido vários desaguisados com o capitão Pimenta, alguns trazidos ainda dos Açores, diferentes formas de estar, faziam com que o relacionamento não fosse o ideal. Apesar dos sinais que vinha demonstrando, nunca nos passou pela cabeça, muito menos a mim, que a situação acabasse como acabou.
Uma noite, cerca das duas horas da madrugada ouvem-se vários tiros, pensamos logo que os mesmos fossem disparados por algum camarada de reforço e que tivesse avistado algo anormal. Claro, que os mesmos puseram o aquartelamento em polvorosa, toda a gente se levantou com as armas na mão. Qual não foi o nosso espanto quando verificamos que os mesmos vinham de um camarada nosso (o Cabral) no centro da parada a chamar pelo capitão. “eu mato-te meu desgraçado”, “vem cá para fora se tens coragem”, “filho de puta, queres desgraçar-me mas eu mato-te primeiro”, e ia disparado para o ar, causando enorme alvoroço entre nós. Depois os mais “inteligentes” e “corajosos” diziam – o gajo está passado da cabeça, “mata-se” o gajo, outros, os mais sensatos, diziam que é o cacimbo.
Penso que o único sensato de entre cento e quarenta/cento e cinquenta homens era eu, porque sabia dos problemas do Cabral, até de natureza (estes principalmente) familiar. O Cabral era casado e já tinha uma filha, casou antes de ir para a tropa, depois era oriundo de uma zona (Rabo de Peixe) com imensos problemas quer económicos quer sociais, depois e quanto a mim o mais importante para o comportamento do Cabral, foram/eram as notícias de caracter anónimo que lhe chagavam acerca do comportamento da esposa. Juntar tudo isto naquela cabeça dá uma mistura explosiva. O Cabral não aguentou a pressão, descarregou-a naquele que menos lhe ligava importância (o capitão Pimenta). Fui o único que se abeirou dele e o convenceu a parar com aquilo, também penso que só eu o podia fazer, pois era o único que ele mais respeitava e eu tinha a certeza que não me fazia mal algum. As quase duas horas que durou a nossa conversa, o Cabral chorou a bom chorar, desabafou, saltaram-lhe para fora os ódios acumulados. Apenas lhe disse para pensar só na filha e em nada mais, o resto resolvia-se. No final levei o Cabral para a caserna e fiquei junto dele até de manhã. Falei com o capitão e informei-o dos motivos de tal acontecer, e garanti-lhe que me responsabilizava pelo comportamento do Cabral. Disse-me que o Cabral tem de ser evacuado tal como o cabo Rodrigues. Disse-lhe que as coisas não podiam ser feitas precipitadas pois as situações não eram iguais, ou pensa o meu capitão se ele lhe quisesse fazer algum mal não o faria de outra forma? A solução, segundo o capitão era o Cabral ser evacuado para o hospital militar de Luanda e eles que resolvessem o problema, para além de participar dele o que o levará à prisão, pois o que ele fez não se tolera. Respondi-lhe que pode ter toda a razão mas o senhor se me permite também tem culpas no cartório, os sinais eram evidentes e o meu capitão tinha o dever de se inteirar deles. Falei com o Cabral acerca de ele ir uns dias para Luanda, “descacimbar” e depois logo regressava. Mas não tenho dinheiro meu furriel, não te preocupes, eu empresto-te algum. E assim foi, passado dois dias aterrou a DO que levaria o meu amigo Cabral para o hospital militar de Luanda. Só o tornamos a ver em Luanda dias antes e embarcarmos para a metrópole. Do Rodrigues nunca mais soubemos.
Outros houve mas de menos amplitude, a maioria de camaradas casados, alguns já pais e outros em vias de o ser. Eram situações a que tinha-mos de acompanhar e aconselhar.
          
          João Gouveia
Furriel Miliciano de Infantaria 

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