Homenagem

Aos combatentes açorianos e continentais que souberam, apesar das circunstâncias, defender a responsabilidade social básica de todos os cidadãos e preservar a sobrevivência da sua sociedade e os valores que a caracterizam.

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TERÁ SIDO EM 4 DE FEVEREIRO 1961 O INÍCIO DA GUERRA COLONIAL?

 Ataque à cadeia de Luanda (4 de Fevereiro de 1961)

A 4 de Fevereiro, no mesmo dia em que a 4ª Companhia de Caçadores Especiais deixa Luanda para, em Malange, se juntar à 3ª Companhia e juntos, com o auxílio prestimoso da Força Aérea, reprimirem a sublevação dos plantadores de algodão na Baixa de Cassange, a PIDE comunicava à Presidência do Conselho que, nessa madrugada, “cerca das 2h30m, grupos de “pretos” armados de catanas assaltaram as prisões de Luanda, tendo sido repelidos. Agora sabe-se que há cinco guardas brancos mortos, três gravemente feridos, cerca de dez pretos mortos e outros feridos.” Mais de um mês depois, a 17 de Março, a Polícia Política voltava a enviar de Luanda a descrição dos acontecimentos, desta vez mais detalhada.
Mal refeita do caso do Santa Maria a opinião pública portuguesa é abalada por um outro choque: produzem-se tumultos graves em Luanda com três grupos de negros que investem sobre a Casa de Reclusão Militar, o Quartel da Companhia Móvel da Polícia de Segurança Pública e as Cadeias Civis. Portadores de pistolas metralhadoras e metralhadoras ligeiras, os assaltantes atacam com grande violência. Ocorrem forças portuguesas e dominam a situação; mas sofrem sete mortos. Parecia restabelecida a calma. Mas no ouro dia, aquando do enterro das vítimas, são alvejadas pessoas que participam nos funerais. Há tumultos para além do cemitério e é tensa a atmosfera na cidade. Intervêm algumas companhias de caçadores especiais, há pouco desembarcados da Metrópole. Dos acidentes nos dois dias, apura-se um total de 24 mortos entre agentes da ordem e atacantes.
As fontes angolanas registam um número muito maior de vítimas entre os africanos. A polícia reage organizando ataques indiscriminados contra as populações dos musseques de Luanda. As patrulhas que percorrem os bairros à noite atacavam a população civil nas suas residências arrastando as suas vítimas para a estrada e um missionário metodista dá conta de mortes de 300 civis. Do número de mortos apenas 194 foram enterrados na vala comum do cemitério. Os restantes foram atirados para uma vala comum aberta a 1.300 metros do Aeroporto. As prisões e fuzilamentos continuam em massa. Até nas barrocas, em pleno dia, se fuzilam angolanos que por ali descansam no período entre as 12 e as 14 horas.
A presença de inúmeros jornalistas internacionais que aguardavam o Santa Maria em Luanda, serve como mola propulsora do assalto às cadeias, agregado no temor das famílias dos presos que indiciavam o desterro dos prisioneiros detidos na Casa de Reclusão para a prisão do Tarrafal nas Ilhas de Cabo Verde. A direcção da UPA estava informada dos acontecimentos e procurou inibir a iniciativa explicando que a guerrilha urbana em Luanda acarretava muitos riscos, devida às poucas saídas da capital. Teria sido o Cónego Manuel das Neves a idealizar o assalto às prisões, facto que é desmentido pelo próprio na carta que apreendida pela PIDE e que faz parte do espólio do Arquivo de Oliveira Salazar. Na realidade, o Cónego Manuel das Neves em finais de Fevereiro enviara uma longa missiva a elementos da direcção da UPA em Léopoldville, carta essa que nunca chegou ao destino pois o portador é interceptado pela PIDE, pois cometeu o erro de seguir a via Uíge-Matadi, quando foi alertado para fazer Ambrizete-Matadi e daí chegar a Léopoldville. A PIDE matou-o de maneira atroz. Houve uma época, ao princípio, que as cadeias não chegavam e os brancos diziam que era preciso guardar prisioneiros. Assim foi que ao transferirem de noite os prisioneiros mataram muitos deles “obrigando-os” a cavar as próprias sepulturas e depois fuzilavam-nos pelas costas.
Nos musseques assistia-se diariamente a patrulhas policiais que desencadeavam rusgas às casas dos angolanos que muitas vezes eram conduzidos às prisões sem culpa formada. Instaurou-se o recolher obrigatório a partir das 20 horas e qualquer concentração de angolanos era objecto da mais cruel e rude repressão. Este clima generalizou-se pelo país inteiro, sendo que a partir daquela altura os angolanos passaram a acreditar que poderia ser alterado o estado de coisas que se vivia em Angola mobilizando mais jovens a prosseguir os trilhos da clandestinidade e a juntarem-se aos patriotas no exterior. A partir do movimento da mobilização de futuros militantes para o ingresso nas fileiras dos movimentos nacionalistas, quer através das células no interior de Angola quer por intermédio dos órgãos da direcção sedeados em algumas cidades africanas, europeias e noutros pontos do mundo, muitos jovens angolanos abandonaram o país para ingressarem na guerrilha.
O que se seguiu ao 4 de Fevereiro de 1961
Mas as represálias sobre os angolanos negros envolvidos ou não no levantamento da madrugada de 4 de Fevereiro não acabaram nesse dia. Após os funerais das vítimas que tiveram lugar no dia 5, uma manobra provocatória por parte de europeus a partir do interior do cemitério de Santana deu azo a que fossem chacinados dezenas de trabalhadores que se encontravam numa serração fronteira. Estava ateada a grande fogueira da “caça ao homem”. Grupos de civis brancos organizaram autênticas batidas pelos muceques da periferia de Luanda e provocavam a morte a centenas de pessoas, utilizando armas que tanto podiam ser uma pistola, uma caçadeira ou um simples ferro. Vários veículos percorriam as estreitas passagens dos musseques derrubando e incendiando cubatas, em seguimento a rusgas policiais ou militares quantas vezes feitas ainda de noite. Como que por encanto, brotavam novos “heróis”, não mais do que assassinos com assomos de patriotismo medieval, fazendo inveja aos “Poeira” e “Tá a andar”, de má memória. Cerca de uma semana depois, no dia 10, registou-se novos tumultos desta vez em menor escala; no entanto serviram de pretexto para novas incursões de grupos de civis brancos que deixaram um rasto de sangue com um número elevado de vítimas mortais. Para as traseiras do cemitério, viaturas e máquinas militares tentavam cobrir com terra as muitas vítimas daquela onda de extermínio, atiradas para valas comuns, abertas para o efeito. Institui-se o recolher obrigatório, a vida em Luanda perde ritmo, com as lojas semi-fechadas e as actividades culturais e desportivas a aguardarem melhores dias. Num dos clubes mais importantes da cidade, os seus dirigentes num assomo de grande “fervor patriótico”, queimam as fotografias expostas nas paredes da sede, que continham atletas negros; o Clube Atlético por sua vez, suspende temporariamente as actividades por falta de atletas (esmagadoramente negros). Os dancings da cidade (Choupal, Bambi, Copacabana, Rex, Marialvas, Estoril), locais onde habitualmente os roceiros iam gastar o suor e sangue dos “contratados”, fecham portas porque a dança naqueles dias era outra.
Diogo Sebastião confirma ao Jornal de Angola que depois dos ataques na madrugada de 4 de Fevereiro a reacção das autoridades coloniais foi de uma brutalidade nunca vista, Icolo e Bengo têm 14 valas comuns com muitas pessoas enterradas vivas. As sanzalas de Cacedo, Banza Quitel, Caculo Cazombo, Kingongo, Camuteba, Calomboloca sofreram uma razia. Nenhum homem era deixado vivo. Até crianças do sexo masculino eram mortas, os colonos não agiam sozinhos, tinham uma rede de informadores (com quem reuniam)……
O que foi e o que significou o “4 de Fevereiro”
Sabendo-se que não coube ao MPLA preparar e executar o “4 de Fevereiro”, tal não significa que seja possível identificar e caracterizar com clareza uma estrutura ou uma organização política responsável pelos acontecimentos. Aliás, o mais provável foi que a autoria e a execução do “4 de Fevereiro” tenha cabido, do ponto de vista “colectivo”, a uma constelação de pequenas organizações sem perfil ou estrutura política muito vincadas e nas quais militavam exclusivamente angolanos negros e (muito poucos) mulatos. Este conjunto de indivíduos e de organizações que contestava a natureza do status quo prevalecente em Angola e, especialmente em Luanda, preparou e executou uma acção de guerrilha urbana com o objectivo de libertar cerca de uma centena de presos políticos detidos em vários estabelecimentos prisionais da capital. Ao mesmo tempo, desejavam dar nota da existência de um entranhado sentimento nacionalista através do recurso ao uso da força. Mas se apesar de tudo não é fácil identificar quais foram e o que eram, ou pretendiam ser, as organizações por trás do “4 de Fevereiro”, é possível identificar aquele que foi o seu mais que provável mentor e líder. Tratou-se do cónego angolano Manuel Mendes das Neves. Um sacerdote com ligações a figuras da UPA, do MPLA e de outras organizações anticolonialistas e/ou nacionalistas posteriormente desaparecidas e remetidas ao esquecimento.
Ora o facto de o “4 Fevereiro” não ter sido da responsabilidade directa ou indirecta do MPLA, como também não foi da UPA, permite uma primeira conclusão: o MPLA não tinha no início de 1961 qualquer capacidade e justamente por esse facto reivindicou a responsabilidade pelo “4 de Fevereiro” para preparar e executar na capital de Angola, ou em qualquer outro ponto desta então província ultramarina portuguesa, uma iniciativa política violenta, com proporções significativas, contra as estruturas do estado colonial. Desta realidade decorre uma outra. Não tendo tido o MPLA quaisquer responsabilidades no “4 de Fevereiro”, é óbvio que este não se tratou de um acontecimento arquitectado pela sua liderança com o intuito de se constituir no momento fundador de uma estratégia político-militar de fustigação sistemática das estruturas do estado colonial.
No início de 1961, quer pelas dificuldades e divisões políticas internas, quer como consequência da sua fundação recente, quer ainda pela acção de prevenção e repressão conduzidas por forças policiais e militares portuguesas, o MPLA não estava minimamente preparado ou habilitado a dar início a uma guerra de insurgência contra o colonialismo português. E no entanto, para o MPLA, o “4 de Fevereiro” e o “15 de Março” foram importantes e emitiram sinais que não podiam ser, e não foram, ignorados. Em primeiro lugar, aqueles acontecimentos provaram aos dirigentes do MPLA, mesmo que (ainda) não o desejassem, ou (ainda) não estivessem preparados, que o início da luta armada contra a soberania portuguesa deveria ter início rapidamente. Caso contrário, aquele movimento perderia qualquer possibilidade de se tornar numa força política representativa do anticolonialismo e do (proto) nacionalismo que se encontrava disseminado entre vários sectores, ou estratos, da sociedade angolana. Da mesma forma, perderia muita da legitimidade política externa que recentemente adquirira ao apresentar-se como partido protagonista da luta por uma Angola independente num continente africano em que a soberania europeia se ia rarefazendo cada vez mais intensamente a partir de 1960.
Daqui se pode, pois, concluir que no início de 1961, quer pelas dificuldades e divisões políticas internas, quer como consequência da sua fundação recente, quer ainda pela acção de prevenção e repressão conduzidas por forças policiais e militares portuguesas, o MPLA não estava minimamente preparado ou habilitado a dar início a uma guerra de insurgência contra o colonialismo português. No entanto, mostrou sentido de oportunidade política não só ao reivindicar a autoria dos ataques lançados em Luanda em Fevereiro de 1961, como ao conseguir tornar verosímil, ao longo de décadas, a responsabilidade por um acontecimento cujas origens ou propósitos desconhecia em absoluto.
Portanto, o início, de facto, das acções militares levadas a cabo por aquele movimento resultou não de uma estratégia de combate ao colonialismo em que o “4 de Fevereiro” seria o acontecimento fundador, mas da circunstância de o “4 de Fevereiro” e, também, o “15 de Março” terem forçado o MPLA a sair do imobilismo em que vivia mergulhado desde a sua fundação. Ou seja, em 1961 o MPLA não deu início à luta armada contra o colonialismo português. Mas em 1961, um conjunto de acontecimentos e de circunstâncias que se desenvolveram absolutamente à margem do MPLA forçaram-no a pegar em armas contra o colonialismo, o que começou a acontecer, timidamente, em 1962.
João Gouveia

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